A VIDA POLÍTICA EM CICLOS E A VAIDADE DOS MEDÍOCRES

Nosso time vinha de cinco temporadas em ascensão. Conquistas esportivas e patrimoniais no currículo de seus dirigentes, que driblaram uma crise que parecia sem fim, quando os pessimistas bradavam: “o Ferroviário vai se acabar”. Apesar da sensação de evolução, pairava algo de estranho nos bastidores corais. No rádio, pretensos candidatos à diretoria subornavam o espaço comercializado por figuras desprovidas de ética e destilavam ódio, disparando a artilharia na direção de um nome específico. Ressaltavam, porém, a importância do investidor – também conhecido como dinheiro – cuja presença era primordial para a sobrevivência do clube, ao mesmo tempo que cumpriam bem a missão de jogar lama na imagem do presidente, taxando-o de ditador, centralizador, arrogante, prepotente e uma série de outros adjetivos de fazer vergonha. Aí vieram reuniões e mais reuniões, sempre intermináveis. Encontros e desencontros. Por força estatutária, o presidente e sua diretoria gozavam do direito de mais um mandato. Uma divergência entre o mandatário maior e um mero dissidente, vaidoso por natureza, apimentou o processo político. Virou a luta do bem contra o mal. E o mal, fizeram crer, seria uma figura específica, o presidente vilão. Afinal, são sempre tantos os mocinhos irremediavelmente vaidosos.

Não, você não está lendo sobre 1997. E nem o presidente em questão é Clóvis Dias, muito menos o investidor chama-se Douglas Albuquerque. São 25 anos na frente do tempo e a história se repete em ciclos que vão e vêm. Dessa vez, tratou de trazer até um inédito título brasileiro no tal processo de ascensão. E é porque diziam que o Ferroviário ia se acabar. Os avanços patrimoniais foram evidentes, o regresso ao cenário nacional também, mas quem se importa? Pagar folha salarial em dia há vários anos é obrigação, dizem aqueles que nunca gerenciaram um time de subúrbio no futebol. Diferente do passado, hoje existem os boquirrotos raivosos das redes sociais e o ritual prevê a disseminação de notícias contraditórias, vazamento de documentos institucionais e interpretações nebulosas. A luta do bem contra o mal, lembra? Os fatos políticos do passado e do presente são rigorosamente – e vergonhosamente – semelhantes. E é possível ver o futuro repetir o passado, se for pra citar o poeta. E se for pra manter a leveza da sabedoria do campo artístico, vale lembrar o ex-goleiro Albert Camus, que você deve conhecer como escritor: “O que eu mais sei sobre a moral e as obrigações do homem, eu devo ao futebol”. Não, amigo. Essa bela lógica pode valer – e sabemos que vale mesmo – na irmandade dos jogadores que dão o sangue em campo em busca de objetivos comuns, mas ela não se sustenta na sordidez do meio político do futebol, onde o estrangeiro se traveste de mocinho e a vaidade é moeda de troca. É só voltar para 1997. Está tudo lá para ensinar.

Qual desfecho você aposta para 2022? A sensação de filme repetido é nauseante. E por ironia do destino, alguns atores – canastrões, por sinal – são exatamente os mesmos do roteiro plagiado do passado. Será que os agentes políticos que hoje fazem o clube não aprenderam nada com a própria história? Deixar a vaidade de lado seria um bom passo para que o Ferroviário siga seu ciclo democrático, seja em qualquer tempo, mas sem a exclusão deliberada e explícita de nomes que estatutariamente podem – e devem – não abrir mão de suas prerrogativas políticas. Quem apaga incêndio com gasolina deveria sair de cena e deixar os diplomatas corais – sim, eles existem – trabalharem no intuito de aparar as arestas. Aqueles que sabem muito bem bajular o investidor – também conhecido como dinheiro, lembra? – mas pedem a exclusão do presidente em específico, deveriam ter vergonha de seus próprios atos parciais. Em 1997, faltou isso em muitos dos mocinhos, que terminaram como vilões. Certa vez, pra finalizar o assunto, um ex-dirigente daquele remoto passado, testemunha ocular da história, taxou aquele nefasto episódio de “A Vaidade dos Medíocres”. Parece que resolveram finalmente investir na produção da continuidade desse filme em 2022. Em breve, nos melhores cinemas.

FORMAÇÃO RARA COM DOIS LATERAIS ESQUERDOS E FACÓ NO ANO DE 1968

Ferroviário Atlético Clube em fevereiro de 1968 – Em pé: Jurandir, Douglas, Gomes, Roberto Barra Limpa, Coca Cola e Barbosa; Agachados: Lucinho, João Carlos, Facó, Edmar e Paraíba

Mais um retrato histórico pouco comum do Ferrão. Foto tirada no dia 10 de fevereiro de 1968, no Estádio Elzir Cabral, antes de um amistoso preparatório contra o time amador da Tuna Luso de Fortaleza. O árbitro do jogo foi Daniel Barbosa, figura simpática que até hoje circula nos estádios cearenses em dias de futebol como membro de quadros móveis. Onde está a raridade da imagem? Ela mostra o time escalado com dois laterais esquerdos: Roberto Barra Limpa e Barbosa. Nesse jogo, Roberto atuou improvisado na lateral direita. O goleador Facó com a camisa do Ferrão em 1968 também é coisa rara, pois alguns dias depois ele foi marcar seus gols no Santa Cruz/PE, onde brilhou por duas temporadas. Na partida em questão, o time coral fez 7×1 no adversário, já esboçando praticamente a base da equipe que conquistou brilhantemente, cinco meses depois, o título estadual invicto daquela temporada. Até hoje no futebol cearense, nenhuma outra equipe repetiu tal feito. O goleiro Douglas Albuquerque virou depois dono de uma construtora e no bicampeonato estadual 1994/1995 foi uma figura importantíssima na função de diretor de futebol. Facó foi prefeito da cidade de Beberibe algumas vezes e sempre se destacou como grande desportista. Roberto Barra Limpa foi assassinado. Alguns dessa imagem já foram morar no andar de cima. Detalhe também para a bela camisa coral, utilizada com frequência no final da década de 1960 e início dos anos 1970.

IMAGENS DO BICAMPEONATO CORAL DA EXTINTA TV MANCHETE

As imagens acima são raras e perfeitas. Dizem muito mais que palavras e evidenciam a total plenitude do bicampeonato do Ferroviário conquistado há exatos 20 anos. Retiradas dos arquivos da sucursal cearense da extinta TV Manchete, elas são capazes de emocionar e resgatar figuras importantíssimas da história coral. Assista e mate a saudade de jogadores como Acássio, Esquerdinha e Robério, do vitorioso técnico Ramon Ramos, do também vitorioso diretor de futebol Douglas Albuquerque – campeão pelo Ferrão em sua época de atleta e também como dirigente – de figuras carismáticas e imortais como Valdemar Caracas e Zé Limeira, e do inesquecível presidente Clóvis Dias, um paranaense que deu ao clube algo que nenhum cearense conseguiu: o título inédito de bicampeão estadual, fazendo-o grande, como sempre foi, em seus quase cinco anos de mandato, naquele que foi o período mais alvissareiro da gloriosa história coral.